setembro 27, 2017

Dos contos de fadas conservadores às alegorias progressistas

Nos últimos anos temos assistido a um progressismo acentuado nas temáticas dos filmes de animação de maior orçamento e sucesso, muitos dos quais têm ganho Oscars para Melhor Filme de Animação. A dar conta desta tendência na atualidade, temos um rumor que circula na rede a propósito de um projeto em que a Disney supostamente tem estado a trabalhar, que contará no papel de heroína principal com uma princesa lésbica. Entretanto, por estes dias surgiu também na rede um video-ensaio (ver vídeo abaixo) defendendo a teoria de que todo este progressismo se deveria aos impactos da mudança tecnológica operada no seio da animação, nomeadamente a mudança do uso de ferramentas analógicas de produção 2d para ferramentas digitais 3d. Ora, se concordo que a mudança ocorreu, tenho dúvidas que se deva ao 3d, apesar de se poder correlacionar no tempo.


Antes de entrar na discussão sobre a temática, deixar desde já claro que em termos de storytelling em concreto, ou seja da estrutura do contar de história, nada se alterou, ao contrário do que se pretende aqui avançar. Os modelos que estão a ser usados hoje pela Pixar são exatamente os mesmo que foram usados por Walt Disney, porque já assim os podemos encontrar na “Odisseia” de Homero. Nesse sentido, tentar apresentar o ritmo, pelo movimento audiovisual como provável responsável por esta alterações, demonstra um total desconhecimento do passado das artes narrativas. Dito isto, o ensaio faz um bom trabalho na enunciação das temáticas pré-Pixar e pós-Pixar, identificando as primeiras como contos de fadas conservadores e as segundas como alegorias progressistas. O ponto identificado pelo autor como de viragem, é o da primeira longa-metragem de animação 3D, criada em 1995, que é nada mais que o primeiro filme criado pela Pixar.

Apesar da Pixar hoje fazer parte do grupo Disney, assumiu-se em 1986 como empresa fruto de um spin-off da Lucasfilm, tendo como fundadores três especialistas em computação: Steve Jobs, Alvy Ray Smith e Ed Catmull. A empresa na altura dedicava-se à criação de ferramentas para animação 3d, e ia fazendo pequenas curtas que iam impressionando a comunidade. Só em 1995 conseguiram criar a primeira longa-metragem, tornando-se um marco para empresa e para o mundo da animação, pela inovação tecnológica ao serviço da arte. Desde 1995 até hoje, a Pixar lançou quase duas dezenas de filmes, sendo talvez a única produtora que até hoje nunca teve um flop nas bilheteiras (para saber mais, leiam o texto sobre o livro Creativity Inc.).

"Toy Story" (1995) de John Lasseter

Feita esta breve introdução à Pixar, podemos rapidamente identificar vários elementos que poderão ter contribuído para a mudança na agulha temática: produtora independente; o método de trabalho; e a formação de base tecnológica. O primeiro ponto, talvez o mais evidente, surge pelo facto de se tratar de uma empresa nova, pequena, que não só podia arriscar tematicamente, como não tinha modelos a seguir, além de que precisava de se diferenciar do Golias da animação que era a Disney. Se nada mais houvesse, só isto diz-nos desde logo que a Pixar se se quisesse afirmar na animação, teria que fazer diferente, e fez. Os animais da Disney são substituídos por brinquedos, mas todos têm uma individualidade própria, movendo-se por desejos e sentires, não dependendo de convenções, nem se importando em romper com tradições.

Relativamente ao método, a Pixar introduziu um sistema de criação muito particular, que horizontaliza os processos hierárquicos, incluindo os criativos. Desta forma, na Pixar não temos um diretor todo poderoso e visionário, mas este também tem de se submeter à avaliação interna pelos pares, que podem opinar de forma crítica, propondo alterações completas ao que está em curso. Deste modo as obras não são criadas segundo uma visão única, mas um conjunto de visões partilhadas sobre a realidade. De certo modo, podemos dizer que a Pixar operou uma democratização sobre o processo criativo, e que no caso o efeito acabou por ser progressista. Contudo, tenho dúvidas sobre o facto deste processo per se poder ser responsável por esse progressismo, pois acredito estar mais relacionado com as pessoas envolvidas, o que me faz passar ao terceiro e último ponto.



O background dos fundadores da Pixar é profundamente tecnológico e enraizado nos valores progressistas emanados do sentir de Silicon Valley. Aqui talvez o video-ensaio tenha acertado, a questão não é tanto a animação 3d, mas a sua tecnologia e o facto de as pessoas que a criaram, terem estado na base da produção dos filmes. O mundo da computação, verdadeiramente disruptivo, focado no avanço contínuo das tecnologias só muito dificilmente germina em ambientes conservadores. Deste modo, e tendo em conta os dois pontos anteriores, a necessidade de apresentar algo novo no género de animação, aliado ao facto de os artistas terem de ouvir as opiniões de tecnólogos, terá criado as condições ideias para que as produções iniciassem toda uma viragem em termos temáticos.

"How CGI Transformed Animated Storytelling" (2017)

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